Uma diligência. Dez passageiros e uma longa viagem cheia de atropelos. É tempo de guerra, estamos nos embates entre França e Prússia, e o objetivo da viagem – da cidade de Rouen ao porto de Le Havre – é livrar esse pequeno grupo de passageiros do domínio prussiano e seus malefícios.
Os passageiros são pessoas abastadas, burgueses ou aristocratas. Com uma exceção única – essa ´mulher de vida fácil´, que, por causa de seu físico arredondado, é conhecida entre os homens pelo apelido de “Bola de sebo”.
Terrivelmente irônico, o conto quase novela de Guy de Maupassant retrata a hipocrisia de uma sociedade moralista, especialmente no tratamento concedido à figura da prostituta, e termina de forma negativa, com a personagem em questão, humilhada ao extremo, da forma mais cruel e injusta.
O conto, que deslanchou a brilhante carreira literária de Maupassant, é de 1880. Pois, quase sessenta anos adiante, em 1939, muito longe da Paris literária, os estúdios de Hollywood iriam lançar um filme que também contava as humilhações sofridas por uma prostituta, em longa e atribulada viagem de diligência.
Com efeito, não é possível ver o western “Stagecoach” (“No tempo das diligências”) de John Ford, sem pensar no conto de Maupassant. Mas, não procure créditos do escritor francês nesse filme americano, que você não vai achar.
Na verdade, o filme é baseado num conto do escritor americano Ernest Haycox (1899-1950), “Stage to Losdsburg”, que, pelo que sugere sua versão fílmica, possuiria a mesma situação diegética que está em “Bola de sebo”: uma atribulada viagem de diligência em que um dos passageiros é uma prostitula. Plágio? Recriação? Homenagem? Pouco importa.
De qualquer maneira, é bem provável que Haycox conhecesse os escritos de Maupassant. Com doutorado em literatura, Haycox foi colaborador do famoso Saturday Evening Post. Autor de várias novelas e cerca de trezentos contos, Haycox era famoso pelas suas histórias passadas no Oeste americano e teve Hemingway como leitor e fã.
Sem acesso ao livro de Haycox, não posso afirmar até onde vai sua semelhança com “Bola de sebo”, porém, se nos ativermos ao conto de Maupassant e ao filme de Ford, podemos afirmar, com certeza, que o roteirista Duddley Nichols lhe acrescentou os elementos cinematográficos necessários a uma produção hollywoodiana.
Uma análise mais detida das histórias narradas, vai detectar uma série de aparentes “coincidências” curiosas. Por exemplo, em Maupassant não há um médico alcoólatra, mas há, sim, um empresário do vinho, sempre disposto a brindar, o Sr Loiseau, que gera, em Ford, um modesto e tímido negociante de vinhos, o Sr Peacock, o qual, por sua vez, com sua maleta repleta de bebida, serve de suporte oportuno ao alcoolismo do médico, o Dr Boone, feito pelo ator premiado Thomas Mitchell.
Várias dessas relações indiretas podem ser aventadas por um leitor/espectador mais atento – em muitos casos, “pulando” o conto adaptado de Haycox. Nele a crítica informa não existirem, nem a comida servida por Bola de sebo em Maupassant, nem o parto em que Dallas assiste, em Ford. Ora, ocorre que essas duas coisas, embora diferentes em si mesmas, se equivalem simetricamente nos dois universos semânticos das duas obras, como elementos que, durante a viagem, contribuíram para a prostituta (Bola de sebo/Dallas) ganhar – momentaneamente que seja- o prestígio do grupo viajante.
E quanto a John Ford, fez ainda mais acréscimos cinematográficos que Nichols. Vejam, por exemplo, a recorrência gráfica das belas montanhas do Monument Valley na paisagem do filme, ingrediente decorativo que, como se sabe, se tornaria obsessivo em seus westerns futuros.
Na comparação entre obra de partida e filme de chegada – abstraindo-se ou não o conto de Haycox – evidenciam-se, igualmente, as diferenças.
A primeira delas, e talvez a mais importante, está na linha tímica: no conto não há, como é usual em toda a ficção de Maupassant, espaço para redenções, ou finais edificantes e/ou felizes.
A pobre Bola de sebo é, na ordem cronológica da história, desprezada, aproveitada (primeiro, gastronomicamente, depois sexualmente), e desprezada mais uma vez – sem piedade. E o conto termina com suas lágrimas. O seu único simpatizante, o liberal e democrata Cornudet (um personagem que poderia associar-se ao Ringo Kid de Ford – mas não é o caso), não faz muito em favor da pobre desolada prostituta, salvo, no final, solfejar – para indignação dos outros passageiros – a redentora “Marseillaise”.
Em “Nos tempos das diligências”, ao contrário, a linha tímica é, vagamente que seja, ascendente.
O filme também começa com o desprezo a Dallas (a prostituta, desempenho de Claire Trevor), demonstrado mesmo antes da partida da diligência pelas senhoras da cidade, enfileiradas em posição de protesto. Em que pese à simpatia do médico e do pistoleiro Ringo Kid (John Wayne), essa atitude perdura, mas não exatamente até o desenlace.
Uma cena sintomática é aquela da refeição na primeira parada da diligência, com todos procurando lugar no lado da mesa oposto ao de Dallas. A Sra Lucy Mallory é aconselhada pelo jogador Hatfield a sentar-se na outra extremidade da mesa, como se Dallas estivesse contaminada. Exceção feita apenas a Ringo que, ao seu lado, lhe serve a comida e com ela entabula conversa.
Na estrutura narrativa do filme, essa cena vai se opor àquela outra, na próxima estalagem, quando, de repente, Dallas vai se tornar imprescindível na consumação do parto precoce daquela mesma Sra Lucy Mallory que, dias atrás, evitara sentar-se ao seu lado durante a refeição.
Ao contrário do que se dá em Maupassant, um vago reconhecimento aparece, quando, no final da viagem a Sra Mallory, com seu bebê de colo arrancado dos braços de Dallas pela governanta, manifesta gratidão, indagando o que poderia fazer por Dallas. Esta sabe que nada.
O fato é que em Maupassant os personagens, mesmo Bola de sebo, são planos, ou seja, imutáveis do início ao fim. A protagonista é ingênua e espontânea e sempre será, e os outros, todos eles, vis, maldosos e hipócritas, sempre. Mesmo o liberal e democrata Cornudet não se transforma durante a viagem, e não sai de seu cinismo e ironia – aliás, como se fosse um alterego do autor.
Diferentemente, em Ford os personagens são esféricos, ou seja, se transformam e crescem moralmente. Se não todos, os principais. Apesar do alcoolismo incurável, o médico cresce no contexto dos passageiros ao realizar o parto depois de uma pesada embriaguez. Até então intransigente, o xerife perdoa Ringo, reconhecendo sua obrigação de vingar um crime familiar. Vencendo o duelo, e depois disso, retornando para se entregar ao Xerife, Ringo cresce e não só por isso, como pela sua convicção em acreditar na boa natureza de uma moça que, por circunstâncias da vida, tem a profissão de prostituta.
E quanto a Dallas, nem se fala: a primeira, que avistamos tangida na rua por um bando de religiosas fanáticas, arrastando tragicamente sua fama de mulher da vida, e a última que vemos, completamente redimida, com um amor e um lar a esperá-la, são duas pessoas bem diferentes, nas circunstâncias e, principalmente, no espírito.
A esse propósito, se o conto de Maupassant traz – mais uma ironia do autor – o nome da marginalizada personagem feminina no título, o filme poderia ter feito o mesmo, já que, mais do que de qualquer outro personagem, o filme é a história de Dallas.
E uma história de amor, com final feliz.