“E nós?” pergunta uma Ilsa atônita ao amante que com tanta convicção se despede dela, no aeroporto, depois de ele, Rick, lhe dizer que vá, sim, depressa, que tome o avião e que siga com o marido para Lisboa. A resposta de Rick – todo mundo lembra – foi esta aí, uma das frases mais famosas do cinema: “nós sempre teremos Paris”.
Desde então (“Casablanca”, 1942), Paris virou o emblema de todos os sonhos românticos, por fazer, desfeitos ou refeitos. Hollywood foi pródiga em desenvolver esse imaginário e produzir filmes com a situação ficcional altamente rentável de “americanos em Paris”.
Agora quem agarra o tema é o novaiorquino Woody Allen no seu “Meia-noite em Paris” (“Midnight in Paris”, 2011), em cartaz em duas salas da cidade.
Apesar do deslumbrante desfile documental de paisagem na abertura, não é tanto a Paris de hoje que parece interessar, no filme de Allen, pelo menos o tempo todo não. O enfoque é parcialmente nostálgico e a Paris idealizada é a dos frenéticos anos vinte, quando, como se sabe, a cidade foi invadida por artistas, escritores, e intelectuais do mundo inteiro e virou uma mágica e única confluência de genialidades.
Na verdade, como “A rosa púrpura do Cairo”, o filme se enquadra naquela categoria de obra com diegese dupla, ou seja, com dois universos ficcionais: há, de um lado, a vida real na Paris de hoje, e de outro, há a vida fantástica dos anos vinte, com direito a um vai-e-vem estratégico, cômico e dramático.
Gil (Owen Wilson) e Inez (Rachel McAdam) são um casal de namorados que estão em Paris meio por conveniência, aproveitando os auspícios do pai dela, alto executivo americano que veio à capital francesa em viagem de negócios. Ocorre que, roteirista de Hollywood e romancista frustrado, Gil é um apaixonado pela cidade, ou mais exatamente pelo seu passado “vintista”.
Uma noite em que é deixado a sós nas ruas noturnas da cidade, se perde, e numa ruela estranha, quando os sinos de Notre-Dame badalam os doze toques da meia-noite, o que acontece? Ele é literalmente transportado (num Peugeot antigo) para a Paris dos anos vinte e lá conhece figuras como Cole Porter, Zelda, Fitzgerald, e Hemingway, com quem, encantado e incrédulo, troca idéias sobre literatura, arte e vida.
Depois dessa noite mágica, a situação se torna mais inviável com a namorada que, cada vez mais envolvida com as coisas vivas do presente, estranha sua obsessão com esse passado morto. Ocorre que a viagem de Gil aos anos vinte passa a se repetir com comprometimentos cada vez maiores. Por exemplo, ele leva para Gertrude Stein os originais do seu livro, que são lidos e apreciados; envolve-se com Adriana, uma amante de Modigliani, Braque, Picasso e Hemingway; e discute sua situação de “dois mundos” com Salvador Dali, Man Ray e Buñuel.
Quando a Paris vintista já tomou conta de sua cabeça, ao ponto de roubar os brincos da namorada para dar de presente a Adriana, o enredo do filme se complica, multiplicando as diegeses: acontece que Adriana, por sua vez, também é uma saudosista; ela, que vive na Paris dos anos vinte, sonha com a Belle Époque e, pior, transporta Gil para lá, os anos 1890, onde, entre as saias levantadas do Can-can, ele vai sentar à mesa do Moulin Rouge com, agora já previsivelmente, Toulouse-Lautrec, Degas e Gaughin. Os quais, por sua vez, renegam a época em que estão e fazem a apologia da era renascentista.
Esse saudosismo em cadeia faz com que Gil tome consciência da importância do tempo presente e o filme se conclui na Paris de hoje, aquela com que se abriu a projeção.
Claro, o que fica ressaltado é o encanto de Paris uma cidade que, em si mesma, resume muitas épocas, e onde o nosso imaginário pode viajar de frente para trás e de trás para frente. No fundo, o filme é uma declaração de amor à cidade, e, no caso, uma bela, charmosa e cativante declaração – não sem razão um dos filmes de Allen com maior bilheteria, segundo estatísticas recentes.
Por outro lado, superlotado de referências cult – um pouco mais que o Allen de costume – não é um filme para o grande público. Se porventura o espectador não sabe quem foi Jean Cocteau, T. S. Eliot, Josephine Baker, Alice B Toklas e outras figuras residentes ou em trânsito na Paris da época – como os já citados mais acima – pode perder as implicações dramáticas e cômicas do enredo. Um exemplo: ao se topar, nos anos 20, com o cineasta Luis Buñuel uma segunda vez, Gil lhe sugere o roteiro de um filme sobre uma festa burguesa sem término, porque ninguém conseguiria sair da mansão depois da festa finda. Buñuel não entende e se recusa a aceitar a idéia. Ora, este foi o filme que Buñuel viria a rodar décadas adiante, em 1962, “O anjo exterminador”, e se o espectador não sabe disso, o lance resulta inócuo.
Uma das coisas mais divertidas em “Meia-noite em Paris” é o que Allen sabe fazer muito bem quando o roteiro é assim, digamos, “bidiegético”: criar uma lógica própria para a mistura do mundo fantasioso com o mundo da realidade; um exemplo entre outros: o detetive contratado pelo sogro de Gil, para persegui-lo, entra também no mundo da fantasia e lá é perseguido como uma figura alienígena, exatamente ao contrário de Gil que, estando na década de 20 por afinidade, é recebido por todos com simpatia e carinho.
Sobre os bastidores da produção, estava imaginando, cá comigo, como não deve ter sido difícil encontrar atores com os ´physiques de rôles´ de tantas personagens históricas. Ótimos estão: o Corey Stoll de Ernest Hemingway, o Tom Hiddleston de Scott Fitzgerald, o Adrien Brody de Salvador Dali e a sempre estupenda Kathy Bates de Gertrude Stein.
A propósito de elenco, quem surpreendentemente está ótimo como alter ego de Woody Allen (digo, o ator) é esse Owen Wilson, com quase os mesmos trejeitos de sua interpretação neurótica. Com certeza, um momento conceitual chave no filme é aquele em que o seu personagem, num nervoso e visceral tour de force expressivo, explica à amiga, a si mesmo e a nós, que uma cidade pode ter o mesmo valor de qualquer grande obra de arte. Claro, a cidade é Paris e a voz é de Allen, o roteirista.
Enfim – como negar? – o filme inteiro é Woody Allen, nos seus setenta e seis anos de existência brilhando igual a Paris – sim, aquela que Ilsa, Rick e nós todos sempre teremos.
joca: gostei do filme, mas não me alumbrei. às vezes, o achei previsíve. achei, também, o hemingway muito caricatural. e o picasso meio efeminado, quando, ao que se sabe, ele não era nada disso.
abraços do
sérgio