Pode não acontecer com todo mundo, mas muita gente traz consigo, em sua memória afetiva, uma música especial, uma que mudou sua vida. Foi em cima desse pressuposto que o documentarista Eduardo Coutinho concebeu e rodou “As canções” (2011), filme em exibição na cidade.
Mas como rodar um documentário desses? Quem poderiam ser as pessoas a depor: famosos ou anônimos? Feita a segunda opção, a produção pôs-se nas calçadas do Rio de Janeiro com a faixa de chamada: “Se você tem uma música que mudou sua vida, cante e conte sua estória”.
Nada menos de 237 pessoas toparam a parada e, rodadas as tomadas iniciais, procedeu-se a uma primeira seleção – já que o filme não poderia ficar tão longo – e 195 foram eliminados. Dos 42 restantes, o próprio Coutinho cortou mais 24 e montou as cenas definitivas com apenas 18 depoentes.
Variando de sexo, profissão, grau de instrução e faixa etária (dos 20 aos 80 anos), os entrevistados fazem, diante da câmera, o que a faixa de chamada pedia: cantam uma canção amada e contam por que ela o é. O cenário é sempre o mesmo – uma cadeira em um palco, vendo-se por trás as cortinas de um azul escuro e mais nada. Os “cantores” por vezes desafinam, ou eventualmente erram uma palavra ou outra das letras, mas, com pouco movimento de câmera e poucos cortes, Coutinho mantém tudo, como se a resguardar a verdade do momento.
Sensível, emotivo, empolgante, ao mesmo tempo dolorido e delicado, o filme só faz confirmar o extraordinário talento de um consagrado documentarista brasileiro que já nos deu tantas obras primas no seu gênero, porém, a mim, a primeira impressão que ocorreu foi a de como cada estória contada consistia em um verdadeiro roteiro de cinema a filmar. Possivelmente como filme ficcional, mas tudo bem.
Vejam o caso daquela senhora idosa que cantou o samba-canção de Fernando César “Do ré mi”, aquele que começa assim: ´Eu sou feliz, tendo você sempre ao meu lado / e sonho sempre com você, mesmo acordado´ (lembram?).
A tal senhora nos conta que, muito jovem,em sua Minasde origem, ficou mãe solteira e foi destratada pela família e deportada para o Rio, com a filha pequena. Pobre, sem muita instrução e sem apoio familiar, a vida na cidade grande era tão difícil que um dia, desesperada, decidiu matar a filha e suicidar-se. Tomou um trem para consumar o gesto fatal bem distante, mas, o que ocorre? Ainda no trem, um rapaz a observa e os dois trocam olhares. Ao descer, pensando em como executar o que tinha planejado, tem sua atenção chamada pela menina, que lhe diz: “Mãe, o moço que estava no trem está atrás da senhora e parece que quer lhe falar”. Ela se vira e pergunta o que ele quer dela, e ele responde com a letra da canção referida. Resultado: o suicídio é esquecido, os dois começam a namorar, logo casam e são felizes para o resto da vida, uma vida longa, tranquila e apaixonada, tão apaixonada que, todo dia, ao acordar, antes de qualquer coisa, os dois solfejavam o “do re mi”, até ficarem velhinhos e ele falecer.
Eu sei, pode ser que haja um certo grau de invenção na estória contada, mas, que importa? O roteiro está dado: é só escrevê-lo e rodar, se você gosta de filme com final feliz.
Se você prefere finais infelizes, é o que mais tem em “As canções”, e, aliás, foi por isso que intitulei esta matéria que se lê de “músicas e lágrimas”, ao mesmo tempo uma referência – como o leitor talvez percebeu – ao clássico de Anthony Mann (1953), sobre a vida e morte do músico Glenn Miller, cujo título brasileiro foi quase este, apenas a primeira palavra no singular: “Música e Lágrimas”
Sim, quase todas as estórias narradas pelos depoentes de Coutinho são relatos tristes com desenlaces disfóricos. Alguns dos “cantores” chegam a chorar, descontrolados perante a câmera, como aquela mulher que canta “Minha namorada”, de Vinicius, ela que passou a existência inteira amando de longe o homem que não pôde ser seu, nem marido, nem amante, nem namorado. Ou aquela outra, abandonada pelo esposo, que nos canta “Retrato em branco e preto” de Chico. Ou ainda aquela outra que descobriu, arrasada, que a canção romântica que ela e o marido alimentavam como tema amoroso, não o era: chegando um dia em casa de surpresa, ele está cantando a tal canção – o “Olha” de Roberto Carlos – no telefone para a amante.
O impressionante é que, em nenhum momento, o filme descamba para o sentimentalismo ou a breguice, embora os personagens sejam, em sua maioria, sentimentais e bregas. Milagres da mão e olho experientes de Coutinho.
Não é a primeira vez que Coutinho leva os seus entrevistados a cantar, porém, aqui, pela primeira vez, é a música que domina o enfoque e todos a ela se rendem: cineastas, personagens e público.
Claro, saí do cinema comovido e pensando em que música mudou minha vida. Ainda não decidi, e por enquanto, transfiro a tarefa ao leitor que, se ainda não viu, não pode perder esse belo exemplo de como o documentário pode ser tão imaginativo quanto a ficção.
Música… No fundo todos nós temos uma, ou mais, que de alguma forma interferiu ou interfere em nossas emoções. Belo artigo, bela dica de filme.
Não assisti o filme do Eduardo Coutinho, mas pelo comentário do João Batista de Brito, vale a pena conferir. Hoje, estou vivo, graças a uma música do Belchior, onde lá pelas tantas, ele pergunta, com aquela voz de Nelson Gonçalves: “Deus? Que Deus?” A minha solidão (naquele momento) no mundo, não podia ser resolvida recorrendo à religião, mas dependia do meu enfretamento real às agruras do mundo. O suicídio iminente,deixei de lado, ao ouvir a música. Viva à música, à Edurado Coutinho!
João querido
seu texto é como uma música aos meus ouvidos, me embala, me traz boas sensações e uma vontade danada de encontrar minha canção e sair cantarolando por aí. São tantas as memórias afetivas…vou correndo ver o filme!
belo texto, joca. doce amargura foi a minha trilha sonora da juventude.
abraço amigo do
sérgio
Engraçado, Sérgio, eu tenho dificuldade de localizar a minha música; parece que foram várias e não apenas uma; entre elas está o The great pretender dos The Platters.
Só uma correção no texto: a canção “Dó-ré-mi” foi mencionada pela senhora viúva que relatou ter contraído pólio ainda criança, ocasião em que conheceu o futuro marido, portador da mesma enfermidade. Eles cresceram, namoraram, estudaram e permaneceram juntos, casados, até o seu falecimento. A senhora a que se refere o texto cantou o bolero “Perfídia”, e enfatiza a importância da música na sua vida, ao afirmar que embalava a sua filha, ainda bebê, com essa melodia, após tê-la ouvido no rádio.
Que belo texto JB! O cinema pode caminha sozinho, porém com a caneta ou o teclado de JB, ele fica maior e muito mais interessante. E eu… procurando minha música.
obrigado.
Caro João,
A escolha da foto para ilustrar teu texto não poderia ser melhor:
singeleza e dramaticidade fundidas feito uma moeda de única face.
Não vi o filme de Eduardo (a imagem é de uma das depoentes?),
mas vou correndo pra Catende.
Abraço bom,
Jotahah! Assunção
Sim, a imagem é de uma das depoentes.
Abraço, João.
Será que chega nos cinemas de Brasília?