Por telefone, um a um, grandes atores e atrizes do teatro francês são convidados a comparecer ao enterro do dramaturgo Antoine D´Anthac, com o qual todos eles, em épocas diferentes, trabalharam em várias encenações da peça de Jean Anouilh, “Eurídice”.
Surpresa ao chegar à mansão do morto! Não há corpo a velar, e sim, um testamento visual, previamente filmado. Em tela de cinema armada no grande salão da mansão, a imagem de D´Anthac se dirige aos presentes e lhes propõe assistirem, nessa mesma tela, a uma nova montagem de “Eurídice”, encenada por uma trupe novata.
Até aqui, espaço, tempo e lógica estão respeitados no filme de Alain Resnais, exibido entre nós, “Vocês ainda não viram nada” (“Vous n´avez encore rien vu”, 2012), mas só até aqui.
De repente, para surpresa do espectador do filme, a plateia que assiste ao filme-testamento começa a participar da encenação que é mostrada na tela doméstica. De início são só fragmentos de falas que se repetem entre os atores, os da tela doméstica e os convidados do morto; depois, os espaços e tempos ficcionais se confundem, e os atores-espectadores viram personagens de uma peça maior cujo cenário se multiplica numa diegese indefinida e indeterminada. Os próprios papéis (Eurídice, Orfeu, amantes, familiares, etc) se reduplicam, já que, dentre os presentes, houve repetições de desempenhos, ou seja, dois ou três deles, fizeram um dia, no palco de D´Anthac, o mesmo papel.
Para complicar, uma curiosidade ainda não dita é que esses atores e atrizes convidados a viver essa experiência inusitada são pessoas reais, chamadas pelos seus nomes verídicos, cada um desempenhando o papel de si mesmo. Por exemplo, Michel Piccoli na peça a que os atores assistem é o pai de Orfeu, porém, no filme a que assistimos é Michel Piccoli mesmo.
Mistura de teatro e cinema, de ficção e documentário, de literatura e plástica, de linguagem e metalinguagem, o filme de Resnais surpreende até a quem está acostumado a sua eterna teimosia de inventar – isso desde o “Hiroshima, meu amor” (1959) até o penúltimo “Erva daninha” (2011), passando por – para citar só uns poucos, mais conhecidos – “O ano passado em Marienbad” (1961), “Providence” (1977), e “Melo” (1986).
Na peça-filme a que se assiste, a personagem de Eurídice, angustiada perante o seu Orfeu amado, repete várias vezes a expressão “é difícil”. Ora, a expressão vale para o espectador do filme de Resnais, que corre o risco de se perder na teia de intertextos e não conseguir manter em mente uma linha diegética que guie sua compreensão. Mesmo lembrando o enredo do mito de Orfeu, a dificuldade persiste.
Um elemento complicador a mais é que os roteiristas, o próprio Resnais e Laurent Herbet, não se limitaram a “adaptar” (entre aspas) um texto só, no caso o “Eurídice” de Anouilh, e com ele, misturaram o enredo de outra peça do mesmo autor, bem menos conhecida do público em geral, “Cher Antoine ou l´amour raté”.
Um corolário inescapável é que “Vocês ainda não viram nada” se torna um filme tão fácil de elogiar quanto fácil de destratar – a depender da inclinação estética do espectador. Ao fã do chamado “cinema de arte europeu” ele com certeza parece perfeito em seu exercício extremo de desconstruir a narrativa e se apresentar como “discurso”, naquela acepção que ao termo dão os teóricos da linguagem – no caso, a de ser um filme que, a todo instante, lembra ao espectador que ele está vendo um filme, digo, um artefato estético, e não a realidade.
Já para o fã do cinema clássico tradicionalmente narrativo, ele pode soar rebuscado e artificial, confuso e principalmente frio, na medida em que a estória que conta nunca toma corpo visível, o mesmo podendo ser dito dos seus personagens, que vivem dramas tocantes entre si, mas não para o espectador. Não ocorre a identificação e o envolvimento típicos do filme tradicional, que constrói uma diegese nítida e coerente onde os personagens parecem gente de carne e osso.
Neste particular, proposital ou não, uma pequena ironia se dá no desenlace, quando o falso morto (re)aparece e tudo se explica como uma modalidade altamente imaginativa de ´practical joke´, ainda que a ´anedota´ nada tenha de ´prática´. Neste momento final, o código do “cinema de arte europeu” é – suavemente que seja – quebrado e, se pensarmos nos dois modelos de espectador acima divisados, uma certa inversão de efeito pode talvez acontecer.
Uma coisa não pode deixar de ser dita: seja qual for o modelo de recepção, “Vocês ainda não viram nada”, é uma obra convicta e séria, a pedir estudos igualmente sérios. Não apenas porque Resnais a fez aos noventa anos, mas porque ela resume uma das propostas de cinema mais originais do século.
Em tempo: na foto abaixo, o hoje idoso Michel Piccoli no papel do pai de Orfeu.
Olá João,
A sua crítica enaltece o filme em tanto. As de São Paulo e do Rio foram neutras e frias. Vi o trailer e me lembrei que, muitos anos atrás, a temperatura do ‘Bad’ em Marienbad, não aqueceram os neurônios. Instalou-se o preconceito em relação a Resnais. Difícil sair dessa cilada. Mesmo juntando um elenco importante, parece que o canto do cisne não conseguiu reabrir as cortinas do palco. Fechado para reformas ? Cineasta em reformas é impossível.
Mas caso um dia eu tiver mood e coragem, passarei o dvd. Caso contrário , assistirei no céu ou no inferno, o talvez último suspiro desse cineasta. O seu recomendado ‘Ship of Fools’ está na frente para ser revisto e + , pelo menos, outras 747 obras. Haja tempo !
Domingo falarei 3 palavras sobre o ‘Segredo dos seus Olhos’ no ESTACINE e, depois, voltaremos para o ‘eixo’.
Abraços,
Andrés.
Olá João,
+ 1 detalhe sobre o filme que só assistirei depois de 747 obras antes: o NINGUÉM VIU e ninguém vai ver (vide sua crítica acima) está no circuito em Recife. João Pessoa, como sempre, no ‘back-stream’ ou melhor ‘no-stream’ da 7ª Arte, só exibindo homens de ferro, aço, papelão, etc. – tudo chatices comerciais para débeis mentais.
Tadinha da população: não existem opções para a mesma devido o duopólio existente na capital paraibana.
Mas voltando para coisa + agradável: sua dica pela qual agradeço:, NAU DOS INSENSATOS. Como você, assisti este filme séculos atrás. Mas o mesmo conseguiu atravessar o tempo. Válido para comparações – você com Altman e eu com Fellini. Poderíamos ver se conseguimos montar algo no ESTACINE no segundo semestre quando estarei sempre por alguns dias em JP. Ou seja 3 filmes-comentados :
1) a NAU ,
2) alguma obra do Altman que você acha comparável e,
3) a NAVE do Fellini sobre a qual eu me proporia falar , já que farei isso no Rio ou em SP até o final do ano.
Que tal ?
Revendo a NAU, o longa parece até + alemão do que americano, pois vive essencialmente dos diálogos. Apesar de alguns pontos fracos, como transferências de cenas; dramaticidade teatral excessiva do médico no final; abertura de muitas portas, sem , por vezes, chegar na essência das personagens, o filme é sem dúvida um grande incentivo para muitos cineastas elaborarem ideias, roteiros e personagens: é uma receita para um bolo a ser consumido em horas especiais, uma ‘Sachertorte’.
Consigo ver uma trilha que vai até LES UNS et LES AUTRES.
Abraços,
Andrés.