“Na Suécia nem tudo é Bergman” foi o título de post aqui veiculado semanas atrás. Dentro da mesma perspectiva, trato hoje de mais uma cinematografia pequena, agora Portugal, aparentemente dominada por um único nome, Manoel de Oliveira. Aqui entre nós, quem é que conhece bem o cinema português fora do nome de Oliveira? O grande público brasileiro muito provavelmente nem ouviu falar desse cinema, e arrisco afirmar que – excetuado Oliveira – mesmo os cinéfilos.
Aos 95 anos de idade e ainda em atuação, Manoel de Oliveira é considerado o cineasta mais idoso do mundo, com uma obra vasta que, de fato, representa bem a cinematografia lusa, porém, não é ele o único a fazer cinema em Portugal. Neste sentido é que introduzo, hoje aqui, um outro cineasta português. Refiro-me a Miguel Gomes jovem cineasta, com apenas três longas realizados, cujo filme recente “Tabu” (2012) vem conquistando prêmios, mundo afora.
Rodado em belo preto-e-branco, “Tabu” conta a estória de uma senhora idosa, Aurora, que, meio esclerosada, vive dando trabalho a sua empregada e a sua vizinha de apartamento, Dona Pilar. Antes da metade do filme, contudo, Aurora vem a falecer e a vizinha fica encarregada de encontrar um senhor que Aurora teria conhecido muito tempo atrás, em Moçambique, quando este país ainda era colônia portuguesa.
Ao ser localizado o idoso e doente Jean-Luka Ventura é que se inicia um longo flashback, que vai se estender até o final do filme, narrado por Ventura em voz over, na verdade a sua grande e trágica estória de amor com Aurora, envolvendo crocodilos, adultério e crime. Nesse flashback não se ouvem as vozes dos personagens, e tudo é explicado pela voz rouca e arrastada de Ventura. Segundo essa voz, morando na zona rural de Moçambique, Aurora era casada com um fazendeiro que vivia viajando e, solitária, teria se envolvido com Ventura, até engravidar, não se sabe se deste ou do marido.
Não tenho espaço para maiores análises, porém, devo dizer que o filme impressiona pela sua coragem em driblar as convenções do cinema tradicional. Possui, por exemplo, um intrigante Prólogo que narra uma lenda de um caçador branco, nos confins da África, que, atormentado pela morte da amada, se suicida, jogando-se aos crocodilos e, mais tarde, o fantasma de uma mulher vai estar aparecendo aos nativos, chorando ao lado de um crocodilo morto. Tal estória nada tem a ver com a narrada no filme, salvo o crocodilo (um animal de estimação de Aurora na África), de fato, um símbolo recorrente, de significação obscura, mas insistente. Como se sabe, o crocodilo (Cf Cirlot) pode ser símbolo de diversas coisas opostas: fúria e mal, fecundidade e poder, conhecimento e enfim, renascimento. É possível que tudo isto se acumule aqui, daí o cartaz do filme – justamente a imagem deste animal.
Outra coisa, as duas partes em que o filme está dividido (digo Aurora idosa em Lisboa e Aurora jovem no Moçambique) são tão estanques no estilo que mais parecem dois filmes diferentes, embora tenham nomes remissivos, um chamado “Paraíso perdido”, e o outro “Paraíso”.
Em “Paraíso perdido”, por exemplo, quem tem mais tempo de tela não é Aurora, e sim, sua vizinha Pilar, uma senhora de meia idade, muito católica, que vive assediada por um pintor sem talento. Caritativa, Pilar presta serviço de natureza social, e recebe imigrantes em seu apartamento. Uma dessas imigrantes é uma jovem estudante polonesa, Maya, que inventa uma mentira para não ter que ser hospedada por Pilar, e foge dela toda vez que a encontra.
Quando o filme descamba para a grande estória de amor no Moçambique do passado, o espectador fica se indagando o que fazer com essa imigrante polonesa e com o pintor fajuto, e duvido que encontre. E mais: na tragédia africana, não fica claro por que o amigo de Ventura, Mário, foi morto por Aurora, e muito menos por que o crime suscitou o levante popular que teria conduzido à libertação do país do jugo português.
Enfim, “Tabu” decididamente não é um filme fácil e não foi concebido para o grande público.
Uma curiosidade está no seu título mesmo. No enredo, “Tabu” é o nome de uma montanha perto da fazenda de Aurora, um mero acidente geográfico, mas, naturalmente, as sugestões intertextuais são inevitáveis: Tabu é o nome de um filme mudo do grande diretor alemão W. F. Murnau, de 1931, também contando uma estória de amor passada em ambiente selvagem, os mares do sul do Pacífico. E um detalhe a mais: Aurora, aqui nome de personagem, ainda é o nome de um outro filme do mesmo Murnau, de 1928, este também uma grande estória de amor. Sem dúvida alguma, uma homenagem aos velhos tempos do cinema mudo, ainda cheio do frescor selvagem da narrativa bruta, quando o cinema hollywoodiano ainda não tinha fundado a gramática fixa que este “Tabu” português abomina e descontrói. Por aí.
Manoel de Oliveira já completou mais de 100 anos.