Ao meio da agitada programação infantil de férias, está – ou esteve – em cartaz na cidade “O apartamento” (2016), filme do iraniano Asghar Farhadi, exibido e premiado em Cannes.
Como nos outros filmes de Farhadi, um único fato gera todo o drama. Aqui, uma mulher é atacada por um estranho num apartamento recém alugado.
Quando o filme começa Emad e Rana moravam noutro local, mas são obrigados a abandonar o edifício, que está para ruir. Um amigo consegue para eles esse apartamento que não é grande coisa, mas que, provisoriamente, resolve o problema momentâneo do casal. Um dia só em casa, Rana vai tomar banho e, como o marido está para chegar, deixa a porta do apartamento aberta. Ao invés do marido, entra esse desconhecido e o ataque acontece.
Ao espectador não é permitido ver o ataque, apenas o corolário: Rana toda contundida, já no hospital, sendo tratada. A partir daí o roteiro toma duas direções, relativas aos dois protagonistas e não necessariamente conciliáveis: em Rana, os efeitos psicológicos do trauma; em Emad, a obsessão de encontrar e punir o autor do crime.
Um filme sobre crime, violência, vingança, castigo, perdão, narrado de modo clássico, mas com muita competência, investindo com sucesso na identificação do espectador e no seu consequente envolvimento na estória.
A narração só não é tão clássica porque há um intertexto onipresente. Acontece que, além de professor de literatura, Emad é teatrólogo e Rana, atriz. Os dois estão atuando numa peça que deverá ser apresentada para os alunos da escola de Emad. A peça é simplesmente “A morte do caixeiro viajante” (1949) do grande dramaturgo americano Arthur Miller, e está sendo ensaiada tal e qual o seu texto original.
Os ensaios da peça, as aulas de Emad e a vida doméstica do casal se intercalam, de forma que, nos primeiros vinte minutos de projeção, há uma certa dificuldade em acompanhar a estória. O problema – se é que isto é problema – é logo superado, justamente quando o ataque a Rana ocorre. A partir desse ponto, fica tudo muito claro. Ou nem tanto.
Digo nem tanto porque o filme exige um tipo de espectador um pouco mais sofisticado que o comum. Com efeito, perde parte da significação do filme quem desconhece a peça de Miller, a qual, evidentemente, não foi escolhida de modo gratuito. Os dois enredos, o da peça e o do filme, têm pontos em comum e a montagem é sábia em evidenciar tais pontos, e, sobretudo, os seus simbolismos.
Não tenho espaço para resumir os dois enredos, mas, para dar um único exemplo, digamos apenas que, antes de Emad chegar ao autor da agressão, o espectador que conhece a peça de Miller já desconfia que deverá ser um homem de certa idade – provavelmente, na mesma faixa etária de Willy, o caixeiro viajante de Miller. Quando, na cena final, a idosa e inocente esposa do agressor diz, com sincero sentimento, que “eu não vivo sem este homem”, o leitor da peça lembra a esposa do caixeiro viajante e sua ilusão de que o marido fora um grande comerciante. Willy e o agressor de agora são pessoas diferentes, porém, a ilusão conjugal é a mesma.
Notar que, sem coincidência, a palavra que dá título original ao filme, “Forushande”, em árabe, tem o mesmo sentido da palavra chave na peça de Miller: “Salesman”, ou seja ´vendedor”.
Uma cena marcante – exemplo de excelente lance de roteiro, concebido para incrementar o nível de dramaticidade – é a da macarronada, servida à mesa, por Rana, ao marido e ao garoto visitante, e, depois das primeiras deliciosas garfadas, descartada por Emad, ao saber que os ingredientes haviam sido comprados, inadvertidamente, com o dinheiro que o agressor, por descuido, deixara no apartamento. A esposa, Rana, não sabia da origem do dinheiro, porém, para Emad, o marido, é como se o dinheiro estivesse pagando o uso feito do corpo da esposa.
Quanto ao desenlace – o confronto do casal com o agressor e sua família – acho que o espectador do filme concorda comigo em que a sequência é desnecessariamente prolongada e exageradamente cruel, não apenas com o agressor e sua família, mas também com o espectador.
Para quem não lembra bem, o diretor Asghar Farhadi é um dos grandes nomes da cinematografia iraniana da atualidade. Dois de seus filmes recentes tiveram destaque de crítica e público entre nós: “À procura de Elly” (2009) e “A separação” (2011), ambos com o mesmo esquema narrativo de “O apartamento”, já referido na abertura desta matéria: um único fato deslanchando o drama. No primeiro, o desaparecimento de uma professora primária; no segundo, a iniciativa de mudança de um casal.