Depois de “Conterrâneos velhos de guerra” (1991) e “Barra 68”(2000), o cineasta Vladimir Carvalho completa a sua documental trilogia brasiliense com o filme “Rock Brasília: era de ouro” (2011).
Para quem conhece o autor de “O país de São Saruê”, esse candango paraibano que carrega consigo a cultura e o imaginário do Nordeste brasileiro, não deixa de ser curioso vê-lo tratar de rock, especialmente este – como relatado pelos depoentes no filme – de assumida origem britânica, bem Punk, bem the Clash, bem Sex Pistols. De qualquer modo, um isótopo é, com certeza, a cidade de Brasília ela mesma, cenário do rock tratado e segunda paixão do cineasta.
Em forma de entrevistas sequenciadas com os envolvidos, o filme conta a estória de toda uma geração brasiliense de músicos que despontou nos anos oitenta/noventa e revolucionou o cenário da MPB. A figura central talvez seja Renato Russo, mas o filme dá voz a toda uma vasta comunidade musical brasiliense, incluindo os respectivos parentes, amigos e profissionais de alguma maneira ligados à música.

Acompanha-se a formação de bandas como a incipiente e pouco conhecida Aborto Elétrico, e as famosas Legião Urbana, e mais tarde Capital Inicial, além de Plebe Rude e Paralamas do Sucesso, com depoimentos esclarecedores de seus integrantes.
Renato Russo (em entrevista inédita de 1988, mais entrevista de 1994 para a MTV), Fê Lemos, Flávio Lemos, André Mueller, Bi Ribeiro, Dinho Ouro Preto, Dado Villa-Lobos, Philipe Seabra, Marcelo Bonfá, Carlos Marcelo: a turma toda está lá, além de “periféricos” como Hermano Vianna, Herbert Vianna e Caetano Veloso.
Para o espectador, o documentário é um bom exemplo de como são necessariamente árduos, aleatórios, e as vezes selvagens os caminhos do show business musical, especialmente se os seus componentes são jovens idealistas sem costas quentes em que se amparar – e isto numa cidade historicamente nova e, portanto, sem grande tradição de música, ou de outra forma de arte.
Mas acho que o que mais ressalta, no filme de Carvalho, é a dimensão política desse “movimento musical” (se assim puder ser chamado) e, neste sentido, a canção “Que país é esse?” passa a ser emblemática dos dois, digo, do movimento e do filme. Aquele momento em que Renato Russo desabafa o seu desencanto com a situação política do país, listando cronologicamente os fracassos, de Tancredo a Collor, é um momento chave.
Aliás, suponho mesmo que – depois do motivo Brasília – deve ter sido essa dimensão política o que mais atraiu o nosso Vladimir Carvalho que, diga-se de passagem, nunca, que se saiba, lidara cinematograficamente com música, salvo para escolher trilhas sonoras para seus filmes.
Mas, claro, “Rock Brasília” não é só política. Embora o politicamente inquieto Russo seja uma figura de destaque, e os depoimentos de sua mãe e irmã, completem um quadro comovente de sua breve existência, o filme abre e fecha com o pessoal do Capital Inicial, o pai, Briquet de Lemos, e os dois filhos, Flávio e Fê. A cena final em que, de propósito, se repõem os três lado a lado e se pede, do pai, uma impressão, diz tudo, e esse tudo soma, à dimensão política, a existencial. Não vou descrever os detalhes, porém, a tomada daquela cadeira vazia enquanto os créditos do filme sobem é uma das melhores sacadas que conheço no cinema documental brasileiro dos últimos tempos.
Sim, é verdade, há pouco tempo de tela para as performances dos cantores, e o espectador, fã dos grupos de rock ou não, sente falta de música ao longo da projeção. No geral, as performances musicais ou são breves, ou se centram num outro problema, como o famoso quebra-quebra no show do Estádio Mané Garrincha em 1988. Ou, se for o caso, no show na Esplanada, a reação da platéia inteira, respondendo a pergunta “que país é esse?” com uma frase só: “é a bosta do Brasil”.
Se for para dar uma impressão pessoal, a minha é a de que o filme é – para o bem ou para o mal – a cara de seu autor, sem, curiosamente, deixar de ser a cara do movimento rockeiro de Brasília. Questões culturais e imaginárias à parte, nessa interface – de alguma forma, misteriosamente resolvida – reside a sua integridade, e não adianta ir procurar elementos fora disso.
Enfim, ao mesmo tempo informativo, curioso, engraçado, triste, nostálgico, questionador e emocionante, “Rock Brasília: era de ouro” nos oferece uma instigante revisão, artística e política, dos sofridos anos oitenta – tempo em que o Brasil, depois de longa trégua, deu, como se sabe, os seus primeiros, incertos e perigosos passos na direção da democracia.
Em tempo: prêmio de melhor documentário no Festival de Paulínea em 2011, “Rock Brasília: era de ouro” está lançado em DVD e, para quem perdeu sua estreia nos cinemas, disponível nas lojas do ramo.
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