Com chave de ouro fechou o Fest-Aruanda 2015 “Chico: artista brasileiro”, filme de Miguel Faria Jr sobre o cantor, compositor e escritor Chico Buarque de Hollanda.
Para quem conhece o trabalho de Faria Jr e o de Chico, o filme é o esperado, mas, o esperado que agrada. E muito.
O esquema é simples. O cineasta fez com o compositor uma longa entrevista em sua residência. Selecionou trechos dessa entrevista e correu atrás das fontes – iconográficas ou de outra ordem – que tivessem a ver com a fala. Em certos casos pode ter sido o contrário: fez perguntas a partir de material iconográfico disponível – o que dá no mesmo. Outra providência foi encenar gravações de performances de cantores interpretando Chico, e intercalá-las à narração. Algumas delas atuais, feitas exclusivamente para o filme, outras antigas, buscadas em arquivos. Os depoimentos de amigos e parentes são poucos, provavelmente para não alongar a projeção, já repleta de preciosidades imperdíveis.
O resultado é, naturalmente, um passeio delicioso pela carreira e pela vida do compositor e cantor mais querido e mais admirado da MPB.
A ordem dos fatos é mais ou menos cronológica, com ligeiros ´retornos´, pedidos pela eventual recorrência de certos assuntos. A abertura é dada à última composição de Chico, “Sinhá”, cantada por ele mesmo, mas, depois disso, vai-se à infância e segue-se a linha do tempo até o momento presente, com a abordagem do Chico escritor. Seu último romance, “O irmão alemão”, passa, então, a ter destaque, quando o autor relata a relação da estória verídica com o que no livro está ficcionalizado, e o cineasta acompanha o autor em sua visita à Alemanha, à cata dos rastros desse irmão bastardo, já falecido, que, aliás, também era cantor.
Um dos poucos depoentes no filme, Edu Lobo, chama a atenção para o bom humor de Chico, lembrando como, em conversa com amigos, ele está sempre rindo. E é justamente o que se vê na tela: um Chico hilário contando coisas engraçadas e, em vários momentos, rindo aos borbotões, da forma mais descontraída.
Essa simplicidade não impede, contudo, que em dadas ocasiões, o cantor faça o charme que adoram fazer as pessoas famosas, que é o de surpreender os seus ouvintes com colocações desconcertantes. Eis duas dele. (1) Dizer que o seu métier é a literatura, e não a música. E (2) dizer que a música de hoje em dia é melhor que a do passado, exemplificando com a bossa nova, que seria coisa de elite, ao passo que a música de hoje seria realmente popular, e, portanto, melhor. E naturalmente, o espectador do filme, neste momento, se indaga: que música?
Em compensação, há revelações preciosas sobre o seu trabalho de compositor, como naquele momento em que, fazendo visível esforço conceitual, explica como as letras das canções podem, de modo inconsciente, remontar a dados biográficos que não eram aparentes no instante da criação.
Outra revelação a guardar diz respeito ao lado político de seu trabalho de compositor: quando, quase lamentando, explica como músicas compostas para denunciar situações políticas ou injustiças sociais, terminam por sofrer perda de significação quando o tempo passa e as coisas mudam.
Entre as cenas de arquivo, inclui-se uma entrevista dada a um canal de televisão em que o locutor pergunta a Chico se, criador de tantas personagens femininas, ele não seria homossexual. E ele retruca o que se esperava: que, no ato de criar as letras ele era tudo, homossexual, mulher, e marginal em todos os sentidos da palavra. A cena é circunstancial, porém, evidencia algo essencial no compositor de “Folhetim”: evidencia que o conceito de heterônimos não é exclusivo de Fernando Pessoa.
Como se sabe, a vida e a carreira de Chico se confundem com a história do Brasil no século XX, e o espectador tem a chance de fazer esse retrospecto, sobretudo – meu caso – se a sua faixa etária não diferir muito da do compositor. Os festivais de música da Rede Tupi, os movimentos estudantis contra a Ditadura, o peso da censura, o Roda Viva, a passeata dos cem mil, o exílio, a luta pelas diretas já… Tudo isso vem à tona, junto com as canções e com os sentimentos nelas envolvidos.
Falar em canções, saí do cinema ouvindo e vendo, e agora mesmo ainda ouço e vejo, a portuguesa Carminho performatizando “Sabiá”. Só não tão nítido porque, no meu lembrar, se superpõe a Laila Garin interpretando “Uma canção desnaturada”. Ou a Maria Bethânia recriando “Olhos nos olhos”. Ou a Ney Matogrosso reinventando “As Vitrines”. Ou… Bem vou parar por aqui.
Sugeri acima que o filme de Faria Jr é inevitavelmente previsível. Como se também não o fosse esta matéria…